A VIOLETA
Quando chegou, foi uma alegria para todos. A casa encheu-se com a sua irrequietude, a sua alegria, a sua graciosa vivacidade. Meus Pais adoravam-na e eu os meus irmãos disputávamos a sua companhia e o seu afecto, mas era a mim que ela preferia. Ia-me esperar ao fundo da íngreme escada de madeira, mal me pressentia, e era a correr à minha frente que subia as duas dúzias de degraus carunchosos que davam acesso directo à cozinha.
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É verdade. A cozinha era a sala de entrada na casa. Ali ficava também o tanque de lavar a roupa e havia um pequeno desvão onde ficava a retrete, cuja porta era apenas um simples cortina de chita; a seguir, uma outra peça que servia de sala de jantar, sala de estar, oficina de trabalho do nosso Pai, atelier de costura da nossa Mãe, e quarto improvisado num recanto abaulado do tecto; e por último o quarto de dormir dos Pais, onde havia ainda uma cama para os mais novos e onde também, por ser o local mais reservado e o único que possuía uma porta, se tomava, à vez, o banho semanal num enorme alguidar onde se deitava previamente uma panelada de água quente, temperada a gosto com outra de água fria. Aos mais pequenos era obviamente a Mãe que os desencascava com uma espoja dura e um pedaço de sabão azul e branco, ignorando a choradeira e os protestos dos inveterados e renitentes aquófobos.
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Escusado será dizer que toda água que se consumia em casa, para os banhos, para lavagem, no tanque, das infindáveis trouxas de roupa suja que a galfarragem diariamente produzia, para deitar na retrete de cada vez que era utilizada, para fazer a comida e para beber, era acarretada às costas, em bilhas de barro, do chafariz público que ficava a uns duzentos ou trezentos metros de distância. Uma fase houve em que, sendo os outros mais pequenos e o mais velho passasse já muito tempo fora, a trabalhar ou à procura de emprego, era a mim que cabia o todo o fornecimento de água necessário, pelo que os meus casacos andavam permanentemente rotos num dos ombros, devido ao roçar da bilha de barro nas sua viagens casa –chafariz- chafariz – casa, num vaivém interminável.
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Esta tinha sido a casa –um velho sótão - que os meus pais tinham conseguido alugar aquando da nossa chegada a ”Lisboa”, vindos da nossa distante aldeia transmontana. A Lisboa pensávamos nós, pois era com essa designação genérica que na nossa mente e nas conversas com os vizinhos nos referíamos ao local idealizado, o sonhado destino de chegada: Lisboa, a capital – onde tudo seriam facilidades e a nossa vida seria um mar de rosas, por oposição à vida dura das berças que deixávamos. Afinal era em Moscavide, um pobre subúrbio, então, que se situava o modesto sótão que nos acolheu. Quanto mais dignidade tinha, afinal, a nossa típica casa aldeã com paredes de xisto, do que esta espécie de água furtada, incaracterística e sem alma.”
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Quando ali nos instalamos éramos apenas cinco: Os nossos pais, o Zé, o mais velho, eu a seguir, e o Tino, o mais novo.. O Lau só chegaria um ano depois. Tudo galfarros, como se vê e agora mais uma boca para alimentar. Era apenas mais um. Bastava que se acrescentasse mais um púcaro de água à sopa e se migasse mais um punhado de couves, que o pai fizesse mais um ou dois pares de sapatos e que a mãe fizesse mais umas bainhas nuns quantos lençóis ou uns bordados de pé-flor em meia dúzia de fronhas. E a vida continuou, nem boa nem má, antes pelo contrário. Agora, no dia em que, três anos mais tarde, a Violeta apareceu, meus amigos, foi uma festa lá em casa. Todos de volta daquela coisinha fofa, todos apaparicando-a, todos descobrindo uma gracinha nova que fizesse, todos a salientarem o crescimento que se lhe notasse a cada dia que passava.
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Por essa altura, além de não termos água canalizada, não tínhamos rádio, nem electricidade tão pouco. Durante o dia a galfarragem não tinha tempo nem motivo para se preocupar com isso, pois o passava inteirinho na rua, jogando o bilas, o pião a macaca e toda a espécie de jogos com que então se entretinha a malta miúda. Mas à noite, depois do jantar, que ocorria quase sempre por volta das sete, ali ficávamos todos feitos zombies, sem nada para fazer, â volta da luz pálida e bruxuleante do candeeiro de petróleo que fedia quando os bicos da torcida não se encontravam devidamente aparados.
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Nem brincar podíamos, pois o Pai, que além de trabalhar o dia inteiro na oficina ainda trazia trabalho para casa, não tinha paciência para aturar o chinfrim das disputas em que terminavam, quase sempre as nossas brincadeiras. Aí, logo ele se levantava para impor a sua rigorosa disciplina e de tal modo sabia aliar a teoria à prática, que à frase “levas um sopapo” correspondia a um imediato sopapo a cair-nos no lombo. Aquilo era chapada num, nalgada noutro, puxão de orelhas noutro ainda – tudo distribuído, diga-se, de forma a que ninguém pudesse pôr em causa a democraticidade do avio.
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E lá ficávamos encolhidos a um canto, mudos que nem ratos, receosos de concitar de novo o mau humor do nosso impaciente progenitor. A nossa quietude, porém, durava muito pouco tempo. À sorrelfa lá se iam aplicando uns beliscões e umas sapatadas, até que de novo recomeçava a generosa distribuição de tabefes a que nenhum era poupado. Ainda aguentávamos mais um tempinho, rindo da sombras gigantescas que o candeeiro projectava das nossas silhuetas, mas logo chegava o doutor pestana e por voltas nove já estava tudo em vale de lençóis.
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Mas quando ela chegou, tudo passou a ser diferente. O Pai humanizou-se e tinha para com ela a paciência e as atenções que lhe faltavam para com os rapazes. Aceitava memo que lhe desarrumasse as ferramentas ou lhe escondesse a peça de trabalho que tinha entre mãos. A Mãe, embevecia-se com ela e prodigalizava-lhe mimos e carícias jamais vistos lá em casa e para a garotada, então, a sua vinda tinha sido uma autêntica sorte grande.
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Os serões passaram a ter outra animação, todos rindo e aplaudindo as suas traquinices. Passou a haver menos bulhas e consequente diminuição de tabefes e até o sono passou a chegar mais tarde. Por seu lado, os dias também ganharam outro motivo de interesse, pois saía à rua sem e a levar, Aliás nem era preciso convida-la que ela mal se apercebendo que algum de nós se preparava para sair, perfilava-se logo para lhe fazer companhia . Pode parecer pretensão da minha parte, mas, como já referi, acho que ela tinha um predilecção especial por mim. De estranhar seria que assim não acontecesse, já que eu era o que disponibilizava mais tempo para lhe dar atenção, e o que mais brincava com ela. Ensinava-lhe a fazer momices e gracinhas e fui eu que conseguisse que ela andasse de pé, sozinha, sem ninguém a ampara-la. Era a mim que ela tentava defender quando algum dos outros me atacava, a sério ou a brincar, tanto que alguns amigos, achando-lhe piada, muitas vezes fingiam bater-me ou derrubar-me, só para ver a sua reacção em minha defesa
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Por isso corria para mim sempre que me via , saltava-me para o colo, logo que me sentava e ali adormecia muita vezes, não em disputas e cenas de ciúmes dos outro galfarros. Resumindo, ela era uma bênção, uma mais valia para uma família recém chegada da província, desenraizada ainda da maneira de viver e de sentir da malha social envolvente.
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Certo dia, alguém bateu à porta, com estrondo. O Pai foi abrir. Os dois homens de fato de macaco e boné de pala que se apresentaram, inquiriram sem mais preâmbulos: Onde é que ela está? Vimo-la entrar para aqui. Mas viram o quê, o que é que vocês querem, afinal?. Queremos leva-la. Já lhe tínhamos deitado a mão, mas ela deitou-se a nós, arranhou-nos e escapuliu-se. Vimo-la entrar para aqui. Faça o favor de a entregar. O Pai, discutiu, barafustou, mimou-os com um chorrilho de vernáculos vocábulos, o que levou a Mãe pedir-lhe moderação por causa das crianças - como se as crianças não os conhecessem todos e muitos mais.
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Foi então que ela, que assustada se escondera num recanto do sótão, como que pressentindo os problemas que a sua fuga e a recusa do nosso Pai em não a entregar nos iria acarretar, levantou-se do seu canto, envolveu-nos um a um com um olhar triste, desceu as escadas a correr e enquanto o pai ainda reafirmava mais uma vez a sua intenção de não a entregar, passou-lhe por entre as pernas, driblou os homens que a reclamavam e desatou a correr rua fora.
Baldado esforço. Os homens tinha estendido a toda a largura da rua uma rede, de cujas malhas não conseguiu escapar, sendo levada de imediato para a carroça camarária que de quando em vês aparecia para recolher os cães encontrados na rua sem coleira e sem licença.
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Durante todo o dia o nosso pai se manteve de rosto fechado, enquanto a mãe e os galfarros choraram e berraram como Madalenas arrependidas.
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Minha pobre Violeta! O seu destino terá sido certamente, o habitual nestes casos, que era servir de alimento às feras do Jardim Zoológico. Nos meses e anos que se seguiram, sempre que via um cãozinho com a sua estatura, o seu pelo longo, o seu focinhito aguçado, a sua cauda em pluma, a sua estela preta na testa, o coração se me alvoroçava e a boca se abria para pronunciar em alta e excitada voz, o chamamento que, a ser correspondido, me proporcionaria um prazer que ninguém, ninguém pode fazer ideia da sua medida.
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Diz-se que numa infância feliz há sempre a história de um cão. Na minha, assim aconteceu. O cão da minha infância era esta cadelinha gentil, que baptizámos de Violeta. Já perdi tantos amigos, tantos conhecidos ao longo da minha vida, que de alguns já nem me lembro ou deles guardo, quando muito, esbatidas e vagas reminiscências. Pois acreditam que quase não se passa um dia sem que me lembre da Violeta? E ainda hoje, agora com setenta e sete anos que os faço hoje, sempre que vejo um cãozito com as característica que referi, não grito, porque parecia mal na minha idade mas chamo, baixinho, só para mim Violeta, Violeta…
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Almada, 15 de Março de 2006
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É verdade. A cozinha era a sala de entrada na casa. Ali ficava também o tanque de lavar a roupa e havia um pequeno desvão onde ficava a retrete, cuja porta era apenas um simples cortina de chita; a seguir, uma outra peça que servia de sala de jantar, sala de estar, oficina de trabalho do nosso Pai, atelier de costura da nossa Mãe, e quarto improvisado num recanto abaulado do tecto; e por último o quarto de dormir dos Pais, onde havia ainda uma cama para os mais novos e onde também, por ser o local mais reservado e o único que possuía uma porta, se tomava, à vez, o banho semanal num enorme alguidar onde se deitava previamente uma panelada de água quente, temperada a gosto com outra de água fria. Aos mais pequenos era obviamente a Mãe que os desencascava com uma espoja dura e um pedaço de sabão azul e branco, ignorando a choradeira e os protestos dos inveterados e renitentes aquófobos.
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Escusado será dizer que toda água que se consumia em casa, para os banhos, para lavagem, no tanque, das infindáveis trouxas de roupa suja que a galfarragem diariamente produzia, para deitar na retrete de cada vez que era utilizada, para fazer a comida e para beber, era acarretada às costas, em bilhas de barro, do chafariz público que ficava a uns duzentos ou trezentos metros de distância. Uma fase houve em que, sendo os outros mais pequenos e o mais velho passasse já muito tempo fora, a trabalhar ou à procura de emprego, era a mim que cabia o todo o fornecimento de água necessário, pelo que os meus casacos andavam permanentemente rotos num dos ombros, devido ao roçar da bilha de barro nas sua viagens casa –chafariz- chafariz – casa, num vaivém interminável.
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Esta tinha sido a casa –um velho sótão - que os meus pais tinham conseguido alugar aquando da nossa chegada a ”Lisboa”, vindos da nossa distante aldeia transmontana. A Lisboa pensávamos nós, pois era com essa designação genérica que na nossa mente e nas conversas com os vizinhos nos referíamos ao local idealizado, o sonhado destino de chegada: Lisboa, a capital – onde tudo seriam facilidades e a nossa vida seria um mar de rosas, por oposição à vida dura das berças que deixávamos. Afinal era em Moscavide, um pobre subúrbio, então, que se situava o modesto sótão que nos acolheu. Quanto mais dignidade tinha, afinal, a nossa típica casa aldeã com paredes de xisto, do que esta espécie de água furtada, incaracterística e sem alma.”
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Quando ali nos instalamos éramos apenas cinco: Os nossos pais, o Zé, o mais velho, eu a seguir, e o Tino, o mais novo.. O Lau só chegaria um ano depois. Tudo galfarros, como se vê e agora mais uma boca para alimentar. Era apenas mais um. Bastava que se acrescentasse mais um púcaro de água à sopa e se migasse mais um punhado de couves, que o pai fizesse mais um ou dois pares de sapatos e que a mãe fizesse mais umas bainhas nuns quantos lençóis ou uns bordados de pé-flor em meia dúzia de fronhas. E a vida continuou, nem boa nem má, antes pelo contrário. Agora, no dia em que, três anos mais tarde, a Violeta apareceu, meus amigos, foi uma festa lá em casa. Todos de volta daquela coisinha fofa, todos apaparicando-a, todos descobrindo uma gracinha nova que fizesse, todos a salientarem o crescimento que se lhe notasse a cada dia que passava.
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Por essa altura, além de não termos água canalizada, não tínhamos rádio, nem electricidade tão pouco. Durante o dia a galfarragem não tinha tempo nem motivo para se preocupar com isso, pois o passava inteirinho na rua, jogando o bilas, o pião a macaca e toda a espécie de jogos com que então se entretinha a malta miúda. Mas à noite, depois do jantar, que ocorria quase sempre por volta das sete, ali ficávamos todos feitos zombies, sem nada para fazer, â volta da luz pálida e bruxuleante do candeeiro de petróleo que fedia quando os bicos da torcida não se encontravam devidamente aparados.
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Nem brincar podíamos, pois o Pai, que além de trabalhar o dia inteiro na oficina ainda trazia trabalho para casa, não tinha paciência para aturar o chinfrim das disputas em que terminavam, quase sempre as nossas brincadeiras. Aí, logo ele se levantava para impor a sua rigorosa disciplina e de tal modo sabia aliar a teoria à prática, que à frase “levas um sopapo” correspondia a um imediato sopapo a cair-nos no lombo. Aquilo era chapada num, nalgada noutro, puxão de orelhas noutro ainda – tudo distribuído, diga-se, de forma a que ninguém pudesse pôr em causa a democraticidade do avio.
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E lá ficávamos encolhidos a um canto, mudos que nem ratos, receosos de concitar de novo o mau humor do nosso impaciente progenitor. A nossa quietude, porém, durava muito pouco tempo. À sorrelfa lá se iam aplicando uns beliscões e umas sapatadas, até que de novo recomeçava a generosa distribuição de tabefes a que nenhum era poupado. Ainda aguentávamos mais um tempinho, rindo da sombras gigantescas que o candeeiro projectava das nossas silhuetas, mas logo chegava o doutor pestana e por voltas nove já estava tudo em vale de lençóis.
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Mas quando ela chegou, tudo passou a ser diferente. O Pai humanizou-se e tinha para com ela a paciência e as atenções que lhe faltavam para com os rapazes. Aceitava memo que lhe desarrumasse as ferramentas ou lhe escondesse a peça de trabalho que tinha entre mãos. A Mãe, embevecia-se com ela e prodigalizava-lhe mimos e carícias jamais vistos lá em casa e para a garotada, então, a sua vinda tinha sido uma autêntica sorte grande.
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Os serões passaram a ter outra animação, todos rindo e aplaudindo as suas traquinices. Passou a haver menos bulhas e consequente diminuição de tabefes e até o sono passou a chegar mais tarde. Por seu lado, os dias também ganharam outro motivo de interesse, pois saía à rua sem e a levar, Aliás nem era preciso convida-la que ela mal se apercebendo que algum de nós se preparava para sair, perfilava-se logo para lhe fazer companhia . Pode parecer pretensão da minha parte, mas, como já referi, acho que ela tinha um predilecção especial por mim. De estranhar seria que assim não acontecesse, já que eu era o que disponibilizava mais tempo para lhe dar atenção, e o que mais brincava com ela. Ensinava-lhe a fazer momices e gracinhas e fui eu que conseguisse que ela andasse de pé, sozinha, sem ninguém a ampara-la. Era a mim que ela tentava defender quando algum dos outros me atacava, a sério ou a brincar, tanto que alguns amigos, achando-lhe piada, muitas vezes fingiam bater-me ou derrubar-me, só para ver a sua reacção em minha defesa
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Por isso corria para mim sempre que me via , saltava-me para o colo, logo que me sentava e ali adormecia muita vezes, não em disputas e cenas de ciúmes dos outro galfarros. Resumindo, ela era uma bênção, uma mais valia para uma família recém chegada da província, desenraizada ainda da maneira de viver e de sentir da malha social envolvente.
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Certo dia, alguém bateu à porta, com estrondo. O Pai foi abrir. Os dois homens de fato de macaco e boné de pala que se apresentaram, inquiriram sem mais preâmbulos: Onde é que ela está? Vimo-la entrar para aqui. Mas viram o quê, o que é que vocês querem, afinal?. Queremos leva-la. Já lhe tínhamos deitado a mão, mas ela deitou-se a nós, arranhou-nos e escapuliu-se. Vimo-la entrar para aqui. Faça o favor de a entregar. O Pai, discutiu, barafustou, mimou-os com um chorrilho de vernáculos vocábulos, o que levou a Mãe pedir-lhe moderação por causa das crianças - como se as crianças não os conhecessem todos e muitos mais.
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Foi então que ela, que assustada se escondera num recanto do sótão, como que pressentindo os problemas que a sua fuga e a recusa do nosso Pai em não a entregar nos iria acarretar, levantou-se do seu canto, envolveu-nos um a um com um olhar triste, desceu as escadas a correr e enquanto o pai ainda reafirmava mais uma vez a sua intenção de não a entregar, passou-lhe por entre as pernas, driblou os homens que a reclamavam e desatou a correr rua fora.
Baldado esforço. Os homens tinha estendido a toda a largura da rua uma rede, de cujas malhas não conseguiu escapar, sendo levada de imediato para a carroça camarária que de quando em vês aparecia para recolher os cães encontrados na rua sem coleira e sem licença.
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Durante todo o dia o nosso pai se manteve de rosto fechado, enquanto a mãe e os galfarros choraram e berraram como Madalenas arrependidas.
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Minha pobre Violeta! O seu destino terá sido certamente, o habitual nestes casos, que era servir de alimento às feras do Jardim Zoológico. Nos meses e anos que se seguiram, sempre que via um cãozinho com a sua estatura, o seu pelo longo, o seu focinhito aguçado, a sua cauda em pluma, a sua estela preta na testa, o coração se me alvoroçava e a boca se abria para pronunciar em alta e excitada voz, o chamamento que, a ser correspondido, me proporcionaria um prazer que ninguém, ninguém pode fazer ideia da sua medida.
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Diz-se que numa infância feliz há sempre a história de um cão. Na minha, assim aconteceu. O cão da minha infância era esta cadelinha gentil, que baptizámos de Violeta. Já perdi tantos amigos, tantos conhecidos ao longo da minha vida, que de alguns já nem me lembro ou deles guardo, quando muito, esbatidas e vagas reminiscências. Pois acreditam que quase não se passa um dia sem que me lembre da Violeta? E ainda hoje, agora com setenta e sete anos que os faço hoje, sempre que vejo um cãozito com as característica que referi, não grito, porque parecia mal na minha idade mas chamo, baixinho, só para mim Violeta, Violeta…
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Almada, 15 de Março de 2006